O Papel do Faraó – O Servo Mestre

O Papel do Faraó – O Servo Mestre

 

1. O Poder Eterno

Ao contrário da imagem distorcida que a Bíblia e Hollywood têm do faraó como um tirano severo que vive uma vida luxuosa, inútil e fácil, o faraó não tinha poder político, vivia numa casa de tijolos de barro e passava o seu tempo cumprindo o seu dever de agir como intermediário entre os mundos natural e sobrenatural, conduzindo ritos e sacrifícios.

Não se esperava que os faraós fossem líderes de exércitos vitoriosos, mas que garantissem uma sucessão regular de ricas colheitas.

O faraó era a fonte de prosperidade e bem-estar do estado, para o seu povo. Ele era seu servo; não seu tirano. Ele lançou as sementes no início da estação e colheu os “frutos” na época da colheita. Ele passou seu tempo servindo aos interesses de seu povo, realizando os rituais necessários em todo o país. Os faraós foram identificados com as colheitas e foram tratados como: Nossa colheita e Nossa colheita.

Com base em seu extenso treinamento com os poderes do sobrenatural, acreditava-se que o corpo do Faraó estava carregado de um dinamismo divino que se comunicava com tudo que ele tocava. Diodoro relatou que o Faraó normalmente levava uma vida restrita. Nem mesmo o mais íntimo dos seus cortesãos poderia vê-lo comer ou beber. Quando o rei comia, fazia-o em privado. A comida era oferecida a ele com o mesmo ritual usado pelos sacerdotes ao oferecerem sacrifícios aos neteru (deuses, deusas).

O direito de governar era considerado uma cadeia contínua de legitimidade baseada em princípios matriarcais, onde a linha de descendência real no Egito era através da filha mais velha. Quem quer que ela se casasse se tornou o faraó. Se o faraó não gerasse uma filha, uma nova “dinastia” seria formada. Não havia “sangue real” no Antigo Egito.

O poder eterno do líder/Rei nunca morre. O poder é meramente transferido de um corpo humano para outro corpo humano (médium). Conseqüentemente, todos os Faraós se identificaram com Hórus como um vivendo Rei e com a alma de Osíris como morto Rei.

Isto é eloquentemente ilustrado em vários lugares nas tumbas e templos do Antigo Egito, como mostrado abaixo, onde Hórus nasce de Osíris após sua morte.

Até os britânicos de hoje seguem, inconscientemente, a mesma crença de que o poder eterno se transfere de um corpo humano para outro, quando dizem:

        "O rei está morto. Vida longa ao rei."

como se dissesse:

          “Osíris está morto. Viva Hórus.”

 

2. O Servo Mestre

O Antigo Rei Egípcio, com a ajuda dos sacerdotes a ele associados e através dos espíritos ancestrais, estabeleceu uma relação adequada entre o povo e as forças sobrenaturais. O líder era considerado como tendo influência pessoal sobre as obras da natureza, a quem eram prestadas honras divinas e a quem eram atribuídos poderes divinos.

O Antigo Faraó Egípcio era uma imagem terrena da soma das energias divinas do universo (neteru). Como tal, ele realizou continuamente os rituais necessários para o relacionamento e comunicação adequados com os neteru (os poderes do universo), a fim de manter o bem-estar do estado e garantir a fertilidade da terra, para que ela pudesse produzir sustento.

Todos os anos, o Rei capinava o primeiro lote de terra agrícola e semeava as primeiras sementes. Se o Faraó não realizasse a liturgia diária aos neteru (deuses, deusas), as colheitas pereceriam. Ele passou seu tempo cumprindo seus deveres para com seu povo, realizando os rituais necessários, de um templo a outro, por todo o país.

Apesar das repetidas acusações de vaidade contra os faraós, vale lembrar que suas moradas enquanto estiveram na terra nunca foram feitas de pedra, mas sim de tijolos de barro, mesmo material utilizado pelos mais humildes camponeses. Esses humildes monarcas mortais acreditavam que o corpo impermanente, formado de argila por Khnum, o neter com cabeça de carneiro, exigia uma morada igualmente impermanente nesta terra. As casas terrenas dos Reis há muito retornaram à terra da qual foram criadas.

 

3. Mantendo a chama viva [Festival Heb-Sed]

A fertilidade do solo, as colheitas abundantes, a saúde das pessoas e do gado, o fluxo normal dos acontecimentos e todos os fenómenos da vida estavam/estão intimamente ligados ao potencial da força vital do governante. É portanto que o rei egípcio não deveria (ou mesmo seria capaz) de reinar a menos que estivesse com boa saúde e bom humor. Conseqüentemente, ele foi obrigado a rejuvenescer sua força vital participando regularmente de práticas físicas e metafísicas conhecidas como rituais Heb-Sed.

O objetivo do festival anual Heb-Sed do Antigo Egito (que acontecia regularmente no final de dezembro) era renovar o poder do faraó em uma série de rituais, incluindo sacrifícios rituais. Os rituais de renovação visavam trazer uma nova força vital ao rei; isto é, uma morte (figurativa) e um renascimento (figurativo) do rei reinante. Um dos rituais Heb-Sed era induzir uma experiência de quase morte para que o rei pudesse viajar para os reinos superiores para rejuvenescer seus poderes cósmicos. Quando ele voltasse, ele seria um “novo” rei. Isso dá mais significado à frase:

          O rei está morto, vida longa ao rei.

 

4. A regra do povo

A conduta e o modo de vida do Faraó eram regulados por regras prescritas, uma vez que sua principal função era garantir a prosperidade e o bem-estar de seus súditos. As leis foram estabelecidas nos livros sagrados para a ordem e a natureza de suas ocupações.

Ele foi proibido de cometer excessos. Até o tipo e a qualidade de seus alimentos eram prescritos com precisão. Mesmo que o rei tivesse meios de desafiar as regras prescritas, a voz do povo poderia puni-lo, na sua morte, com a desgraça de excluir o seu corpo do enterro no seu próprio túmulo.

Quando o corpo do falecido rei foi exposto perto da entrada de seu túmulo, perguntou-se ao povo reunido se alguém se opunha ao sepultamento do rei porque ele não cumpria seus deveres. Se o público demonstrasse sua dissidência por meio de murmúrios altos, ele seria privado da honra do funeral público habitual e do enterro em seu túmulo.

Ao corpo de um faraó egípcio incompleto, embora excluído do enterro na necrópole, não foi recusado o seu direito de ser enterrado em outro lugar. Um exemplo disso é o túmulo comunitário que foi encontrado em 1876 nas imediações do Templo Comemorativo de Hatshepsut (erroneamente conhecido como “Mortuário”), na margem oeste do rio Nilo, em Luxor (Tebas). Aqueles cujo desempenho foi insatisfatório para a população comum foram enterrados neste local. Esses faraós rejeitados incluíam múmias de nomes bem reconhecidos e influentes, como Amenófis I, Tutomose II e III, Seti I e Ramsés I e III.

Como será mostrado mais adiante neste livro, os textos egípcios afirmam claramente que o rei egípcio só pode ter o seu lugar no céu se ele:

não foi falado contra na terra diante dos homens, ele
não foi acusado de pecado no céu antes do neteru (deuses, deusas).”

 

5. O Rei Vitorioso

Nos templos, tumbas e textos do Antigo Egito, os vícios humanos são retratados como estrangeiros (o corpo doente está doente porque é/foi invadido por germes estrangeiros). Os estrangeiros são retratados como subjugados – com os braços apertados/amarrados nas costas – para retratar o autocontrole interior.

O exemplo mais vívido de autocontrole é a representação comum do Faraó (O Homem Aperfeiçoado) nas paredes externas dos templos egípcios antigos, subjugando/controlando inimigos estrangeiros (os inimigos [impurezas] internos). Simboliza as forças da ordem controlando o caos e a luz triunfando sobre as trevas.

A mesma cena de “guerra” repete-se nos templos de todo o país, o que significa o seu simbolismo e não é necessariamente uma representação de acontecimentos históricos reais.

As cenas de “guerra” simbolizam a batalha sem fim entre o Bem e o Mal. Em muitos casos, não existe base histórica para tais cenas de guerra, embora seja fornecida uma data precisa. Tal é o caso das cenas de guerra no Pilar do Templo em Medinat Habu.

Os académicos ocidentais são incapazes de compreender realidades metafísicas e, portanto, de “fazer” eventos históricos a partir de conceitos metafísicos. A famosa “Batalha de Cades” é na verdade o drama pessoal do homem real individual (o rei em cada um de nós) subjugando sozinho as forças internas do caos e das trevas. Cades significa santo/sagrado.

Portanto, a Batalha de Cades significa a luta interior – uma guerra santa dentro de cada indivíduo.

 

[Um trecho de Cosmologia Egípcia: O Universo Animado, Terceira Edição por Moustafa Gadalla]
https://egyptianwisdomcenter.org/product/a-cosmologia-egipcia/